A nova série da Netflix inspirada na popular e atemporal Família Addams, Wandinha, é carregada de referências de obras célebres do horror, como “Carrie”, de Stephen King, “Frankenstein”, de Mary Shelley, entre outras. No entanto, a maior referência talvez seja o compilado de alusões ao escritor Edgar Allan Poe e suas obras — em especial, o poema “O Corvo”.
A Escola Nevermore (em português, Nunca Mais) é uma clara referência ao mestre da literatura de horror, mistério e fantasia. Sendo considerado um dos precursores do movimento literário “romantismo sombrio”, ele, como ninguém, executou em suas obras o uso do irracional, do grotesco, abraçou o lado sombrio, demoníaco e acolheu a melancolia.
A palavra “Nevermore”, em português “Nunca Mais”, é uma das características mais marcantes do poema de maior sucesso de Allan Poe, chamado “O Corvo”. Publicado pela primeira vez em janeiro de 1845, a obra é conhecida principalmente pela atmosfera sombria e sobrenatural e a musicalidade na combinação de estrofes — artifício totalmente original do autor.
O poema retrata um homem imerso em melancolia após a morte da amada Lenora e a chegada de um misterioso corvo falante. O homem, que sofre a perda do amor, aos poucos avança no lastimoso caminho da loucura. Enquanto lamenta pelas dores, ele conversa, impacientemente, com um corvo que repete rigorosamente a expressão “nunca mais”.
Em “A Filosofia da Composição”, publicado em 1846, Edgar Allan Poe detalha o processo de inspiração e criação do poema “O Corvo”. Ele deixa claro que, ao escolher a “Beleza” como sua esfera, ele partiu para escolha do tom ideal, e assim encontrou a “tristeza”.
“A beleza que, repito, constitui a euforia ou elevação prazerosa da alma”, declarou Poe. “Tomando a Beleza como minha esfera, minha próxima decisão foi acerca do tom de sua manifestação mais elevada — e, a experiência já demonstrou, este tom é a tristeza”.
“A beleza, de qualquer tipo, em seu desenvolvimento supremo, leva a alma sensível às lágrimas. A melancolia é, consequentemente, o mais legítimo de todos os tons poéticos”, declarou Poe sobre o tom do poema.
Dito isso, é notável o quanto “O Corvo” de Edgar Allan Poe influenciou a série Wandinha, não apenas com o nome da escola ou do torneio de esporte estudantil, mas também na essência. Naturalmente “esquisita”, a protagonista e seus amigos são deslocados da sociedade considerada “normal” e se conectam por suas peculiaridades.
Sendo assim, não apenas “Nunca Mais” marca a série Wandinha, mas também o sentido por trás da palavra tão repetida — propositalmente — no célebre poema sombrio. Vale ressaltar que a informação do ensaio de Poe (1846) sobre “O Corvo” foi retirada do incrível livro “Medo Clássico – Edgar Allan Poe”, da editora Darkside.
Abaixo, é possível ler a tradução de Fernando Pessoa do poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe. Aproveite a leitura, e até “nunca mais”.
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
–
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais”.
–
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
–
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
–
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.”
–
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
–
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
–
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.
–
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigos, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais”.
Disse o corvo, “Nunca mais”.
–
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.
–
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.
–
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
–
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
–
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca mais”.
–
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
–
“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
–
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
E a minha alma dessa sombra que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!”