Hi-Fi Rush veio do nada e acabou conquistando espaço com seu gostoso ritmo de jogo, das trilhas e da animação que parecia fazer o game ser um divertido desenho animado jogável. O que você pode não saber é que o diretor de animação do jogo é brasileiro!
Douglas de Azevedo, diretor de animação de Hi-Fi Rush e que também produziu algumas cenas do sucesso Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, deu uma entrevista exclusiva para o IGN Brasil para contar sobre como é ser um brasileiro participando da indústria de animação e trabalhando com títulos super importantes.
Nascido no interior de São Paulo, Douglas de Azevedo mora hoje em Vancouver (Canadá) e trabalha no estúdio de animação Titmouse. Com passagens por animações como Irmão do Jorel, Agente Elvis e Big Mouth, recentemente Douglas dirigiu as animações de Hi-Fi Rush e desenhou algumas cenas de Homem-Aranha: Através do Aranhaverso.
Tive o privilégio de conversar com alguém que está diretamente envolvido em dois projetos que adorei jogar e assistir e você pode ler essa conversa agora.
IGN Brasil: Primeiramente, como você se interessou por animação e como chegou ao estúdio Titmouse, aí no Canadá?
Douglas: Eu era menor aprendiz numa empresa no interior de São Paulo. Fazia funções de RH e um dia, durante o almoço, eu estava lendo mangá e um cara de outro departamento começou a conversar comigo sobre o que eu estava lendo. A gente começou a conversar sempre sobre essas coisas e aí eu fui querer saber de que departamento da empresa ele era. Ele me contou que era da ilustração e eu nem fazia ideia que tinha aquilo na empresa em que eu trabalhava.
Acabei conseguindo mudar de setor para trabalhar com eles e eventualmente eu fui efetivado. Assim consegui comprar meu primeiro computador, um K6-500, e aí fui aprendendo a usar Photoshop, colorir e fazer várias outras coisinhas… nesse tempo todo, a coisa mais maneira foi o apoio da família. Minha mãe nunca me parou… tem vezes que muitas famílias dizem “arte? isso não dá dinheiro. Vira advogado, vira médico”, mas ela não. Ela sempre me deu suporte.
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“É muito legal receber mensagens de amigos e colegas artistas dizendo que é a melhor coisa animada que eles já viram. E realmente é muito impressionante.
Daí então eu fui trabalhar no Copa Studio, no Rio de Janeiro. Entre outros projetos, trabalhei em Irmão do Jorel, na primeira temporada, o que foi bem legal já que o desenho já tinha um texto ótimo e a gente conseguia criar bastante em cima do material. Com a experiência que adquiri, me candidatei para uma vaga aqui no Titmouse e, mesmo sem saber falar inglês direito, consegui passar! Agora já estou aqui há sete anos.
IGN Brasil: E trabalhando com grandes projetos, você precisou assinar contrato de confidencialidade sobre Através do Aranhaverso, Hi-Fi Rush e outros?
Douglas: Na verdade, em qualquer projeto a gente tem os NDAs, Non Disclosure Agreement, para evitar que você fale qualquer coisa do projeto fora do projeto. É tudo confidencial. Então você não pode falar sobre nada da produção. Tem vezes que quando ele já é anunciado, você pode falar alguma coisa.
IGN Brasil: Por exemplo, se eu perguntar “você está trabalhando no próximo Aranhaverso?” Você pode falar sim ou não?
Douglas: Não.
IGN Brasil: Entendi…
Douglas: Tem projetos que a gente só pode falar quando eles estreiam ou quando eles anunciam quem trabalha naquele filme. A Titmouse não estava anunciada que trabalhava no Aranhaverso, por exemplo. Então eu só pude falar que eu tava quando o filme saiu.
IGN Brasil: E quais os segmentos de Através do Aranhaverso que você trabalhou?
Douglas: No início do filme, quando o Miles sai de uma loja de conveniência… sabe quando ele tá lutando contra o Spot? Bem no comecinho, quando ele sai com a máscara suja de teia e fala que vai contar a história dele de novo. Na hora que ele começa a falar, abre um caderno na tela e eu fiz aquela cena dele crescendo, da infância para a puberdade e fiz também a cena bem rápida onde aparece ele brigando com o Cabeça de Martelo. E outra que ele aparece brigando com a Besouro. Eles aparecem ali para tomar um soco na cara e o Cabeça de Martelo aparece também no final do filme, entre os vários vilões presos.
Foram essas três ceninhas e foi meio que uma participação especial. Tecnicamente nem daria para ter participado, porque eu estava num outro projeto grande também e que tinha o deadline no mesmo dia para a entrega do Aranhaverso. O projeto, eu posso falar, é o jogo Battle Plan.
Mas aí não dava pra deixar passar e o estúdio foi muito gente boa. Me deixaram escolher quais as cenas disponíveis para o estudo que eu queria fazer. Então eles não chegaram “pega essa aqui e entrega tal dia”, então deu super certo para encaixar tudo no meu cronograma.
IGN Brasil: Para quem é leigo no processo de como fazer uma animação, Através do Aranhaverso já é maravilhoso por podermos ver cada personagem feito com um estilo diferente, cada dimensão de um jeito diferente. Imagino que para um artista, assistir esse projeto finalizado seja um verdadeiro deleite, né?
Douglas: Olha, eu não vou mentir: é muito maravilhoso. Ver algo desse porte sendo produzido para um filme. Normalmente esse é o tipo de coisa que a gente vê em curtas, já que é muito mais artístico. Isso não é muito comum de ser produzido, embora agora o primeiro Aranhaverso tenha sido de fato um marco na história da animação, fazendo uma coisa na contramão do que vinha acontecendo nas animações de grande porte e aí outros filmes começaram a fazer a mesma coisa, como o último Gato de Botas e agora o próximo de Tartarugas Ninja também.
Eu lembro quando saiu o primeiro e eu ficava pensando “nossa, imagina conseguir trabalhar numa produção dessas?”, mas era mais focado em 3D e eu sou mais focado em 2D. Até pensei em começar a estudar mais 3D justamente para ter chance, um dia, e aí quando veio o segundo e descobri que ia ter coisa 2D, foi perfeito.
IGN Brasil: Você tem algum Aranha favorito de Através do Aranhaverso?
Douglas: Ah, o Spider-Punk. Ele é animal! O processo de animação dele foi ultra complexo, com frame-rates diferentes para cada parte do corpo. Mas eu também gostei de uma coisa que é quase um personagem, que é o mundo da Gwen.
O mundo dela é praticamente um personagem do filme, não só um cenário. Ele é todo aquarelado e interativo. Ele muda de acordo com as emoções dos personagens na tela. Quando eles estão tristes, o mundo fica mais escuro… perto do final, quando ela está com o pai, você pode ver o fundo derretendo como se fosse a tinta escorrendo, demonstrando o sofrimento dela. Aquilo pra mim é o pico da animação. Esse filme consegue ir além do que o primeiro fez e isso é muito difícil.
E é muito legal receber mensagens de amigos e colegas artistas dizendo que é a melhor coisa animada que eles já viram. E realmente é muito impressionante.
IGN Brasil: E agora, vamos falar de Hi-Fi Rush! O game saiu no dia que foi anunciado, de maneira completamente secreta e praticamente todo mundo adorou. Ele é lindo e muita gente o comparou com animações matinais de sábado. Então como foi trabalhar no projeto e conseguir chegar nesse resultado?
Douglas: Era exatamente essa a intenção! Hi-Fi Rush é muito especial para mim, pois foi minha estreia como diretor. Eu dirigi a parte de animações em 2D do jogo. Foi muito maneiro. O material que a gente recebeu já tava muito bom, eles mandaram alguns cutscenes pra gente olhar como referência e também uma gravação de gameplay.
Quando eu olhei, na hora já pensei “cara, isso aqui tá animal!” e fiquei “será que a gente vai conseguir fazer o 2D nessa mesma qualidade?”, porque ele mistura animação japonesa com estilo Disney. É tudo muito bem trabalho, com um timing muito legal. É algo bem complexo.
Tivemos várias coisas super complicadas para resolver nesse projeto, uma delas foi o estilo de arte que é puxado para o anime, embora a animação seja mais cartunizada. Só que é muito difícil você encontrar essas duas coisas nos mesmos artistas. Ou a pessoa é mais focada no estilo cartoon, ou é focada no estilo anime. Então para conseguir juntar as duas coisas é algo bastante complexo. Foi algo que deu bastante trabalho, para acertar tudo. E como era um projeto, entre aspas, pequeno. Eu trabalhei cuidando de praticamente todos os setores. Eu fui supervisor de design dos personagens, supervisor e artista de storyboard, além de diretor de animação e supervisor de composição.
Foi um trabalho gigantesco e eu precisei fazer muita coisa além do horário de trabalho. Eu ainda estava dirigindo o Agente Elvis, na Netflix, então ficava lá no horário comercial e depois disso eu começava no Hi-Fi Rush. A parte boa disso, é que como a Tango Games fica no Japão, eu conseguia fazer as reuniões num horário bom para eles.
Foi uma experiência muito boa. Sem sombra de dúvidas foram os melhores clientes que já trabalhamos — e já trabalhamos com muita gente boa, mas eles foram os melhores. O John Johanas, diretor do game, entendia muito bem as limitações do projeto, o que a gente tinha que fazer para poder funcionar. Ele foi bem compreensivo nesse sentido, em comparação com outros que não aceitam bem quando você precisa mudar algum design ou alguma coisa para simplificar a animação. E isso acaba afetando a qualidade final do projeto. O pessoal da Tango é super gente fina, então foi muito bom trabalhar com eles. Eu lembro que a primeira versão do storyboard já tinha sido aprovada, o que é muito raro e aí como não tinha mudança de última hora, fica muito mais fácil manter a qualidade.
IGN Brasil: E como foram os prazos, já que o jogo foi anunciado no dia que ele saiu isso o fez ser mais acelerado na produção?
Douglas: Inicialmente parecia um prazo bom, mas o problema foi que nós começamos a produção da animação perto do Natal — e essa é uma péssima hora para começar qualquer produção, já que todo mundo está para entrar de férias.
Então quando a gente começou, o ritmo ficou muito devagar. Então praticamente a gente perdeu um mês, um mês e pouquinho por conta da pausa que acontece nessa época do ano. Tá todo mundo viajando, ou não consegue focar full time, já que estão com família e tudo mais.
“Tivemos várias coisas super complicadas para resolver nesse projeto, uma delas foi o estilo de arte que é puxado para o anime, embora a animação seja mais cartunizada.
A gente começou o storyboard em outubro, tive a ajuda de dois boards revisionists, que é quem limpa o rascunho do storyboard, enquanto ao mesmo tempo eu fazia a supervisão dos personagens, para deixar os desenhos mais reproduzíveis em 2D. Tinha que escolher onde a gente ia animar 2D e onde ia 3D, como os robôs — já que eles são muito complexos para animar em 2D. E logo depois também teve a composição. Tudo é basicamente ao mesmo tempo, mas seguindo uma linha.
Então, pra mim, que tomava conta de todos os setores, foi sem parar. Então mais próximo do final, o prazo vai atrasando e a gente tem que correr. A gente fez a composição final, que normalmente é em um mês e pouco, em uma semana. A gente teve que correr para entregar e deu tudo certo. Nessa semana eu dormia no máximo quatro horas por dia. Mas foi maneiro porque o resultado ficou incrível.
IGN Brasil: Como foi trabalhar com a trilha sonora e a parte rítmica do jogo?
Douglas: Essa parte foi muito maneira. Tanto para a abertura quanto para o encerramento, a gente recebeu as músicas (Lonely Boy e Honestly), então nós fizemos o storyboard baseado no timing da música. Então tudo na animação bate exatamente com as músicas.
IGN Brasil: Assistindo, eu lembrei muito do que o Edgar Wright fez com Baby Driver: o ritmo levando a cena.
Douglas: Inclusive, uma das inspirações do diretor do game foi justamente Baby Driver. E, embora na abertura e no encerramento a gente já tivesse música, nas cutscenes a gente não tinha as músicas para trabalhar, então nós recebemos um metrônomo, marcando o timing da música e aí fomos animando de acordo com as batidas apontados por ele. Então cada cena, o corte, o movimento mais brusco, é sempre feito com esse ritmo.
Foi um projeto muito divertido de trabalhar e eu não via a hora de entregar o resultado final. Eu não cheguei a terminar o jogo, já que não tenho muito tempo — por conta do trabalho.
Não foi um projeto simples, foi bem trabalhoso, até a arte final foi diferente, por conta das diferenças de traço das artes do game e aquilo é bem trabalhoso. Então eu desenvolvi um sistema com um software, para que tudo fosse desenhado de um jeito e a linha mudasse digitalmente.
O visual, por exemplo, era obviamente inspirado pela arte que veio do game, mas eu também sempre falava que o Aranhaverso (o primeiro filme), era uma referência já que o filme tinha tudo isso de aberração cromática, gradientes e essas coisas de iluminação. Então foi essa mescla de várias coisas, como também a mistura do que ia ser animado em 2D ou em 3D.
“Não foi um projeto simples, foi bem trabalhoso, até a arte final foi diferente, por conta das diferenças de traço das artes do game e aquilo é bem trabalhoso.
Por exemplo, no encerramento, quando o Chai tá pulando nos prédios e fazendo um monte de coisa, a guitarra nas costas dele é 3D. Não tinha como animar isso em 2D para fazer todos aqueles movimentos. Então a gente fez de uma forma que o software mudava de 3D para 2D e ficava bom. Então é tudo coisa técnica que você precisa quebrar a cabeça para ver como vai ser feito — e isso é parte do trabalho do diretor de animação. Desde as escolhas de software até a entrega da arte mesmo. E ter todo esse controle foi uma experiência incrível.
IGN Brasil: Uma última pergunta, bem pessoal: você falou que mangá e anime foram super importantes para você. Então você tem algum favorito? E animações ocidentais?
Douglas: Tem vários… a lista é gigantesca. Eu gosto muito de Fullmetal Alchemist Brotherhood, acho muito maneiro e a história é ótima. Um mais recente é o Mob Psycho, que é animal. E obviamente, um que é clichê, mas foi o que me iniciou no mundo da arte: o Dragon Ball Z.
Eu comecei a gostar de arte e animação por conta de Dragon Ball. Eu sei que a história é simples e tudo mais, mas é divertido demais assistir e eu gosto bastante.
E em animação ocidental, eu acho o Aranhaverso incrível. Pra mim, quando saiu o primeiro, era o melhor filme que eu já tinha visto de animação. Mudou completamente a forma de contar história, mesmo sem ser algo complexo, mas é tudo muito bem feito. É muito difícil encontrar algo com esse nível de perfeccionismo.
Gosto muito de animações da Disney, tipo Tarzan. É muito maneiro. Tem também Eldorado… a lista é gigantesca.
IGN Brasil: Douglas, muito obrigado pelo seu tempo e parabéns pelo trabalho. A gente espera ver muito mais dele em breve.
Douglas: Muito obrigado! A gente tem bastante coisa para trabalhar e espero que o pessoal goste, porque é tudo feito com bastante carinho e dedicação.
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